segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Dia do Médico... (José Carlos Leite Junior)


Tenho amigos médicos, como J. Fioravante lá em Curitiba, sobrinhos médicos como a Tatiana e Wladimir, em Manaus, e o Cristiano aqui em Porto Velho. Há também os profissionais da Medicina que, desconhecidos, marcam nossas vidas em momentos de profundo desespero e insegurança, como o dedicadíssimo Walter Arruda, também de Curitiba.

Medicina é muito mais que profissão, que prestação de serviços, por isto não admite simples mercantilização. O corpo humano, delicado e complexo instrumento, não se cura só por aquilo que se faz medicamente com ele. Rubem Alves resgata em suas palavras o sentido de que em outros tempos era mais facilmente perceptível que médicos cuidavam dos remédios e das intervenções físicas – bons para o corpo – mas tratavam de acender a chama misteriosa da alegria, que não se ascende com poções químicas. Ela se acenda magicamente. Precisa da voz, da escuta, do olhar, do toque, do sorriso. E completa: “Médicos e enfermeiras: ao mesmo tempo técnicos e mágicos, a quem é dada a missão de consertar os instrumentos e despertar neles a vontade de viver...”.

É dia de homenageá-los. De enaltecer o esforço de cada um na extenuante vida acadêmica que tiveram e que nunca terá fim. De reconhecer a importância dos incontáveis plantões, cursos, fóruns, palestras, da incansável busca do conhecimento. Lidam com a doença, que é possibilidade de perda e por isso exige mais do que conhecimento científico. Exige também sensibilidade. E sensibilidade na medida certa.  Dedico a todos vocês a crônica “O Médico”, do Rubem Alves, esse brilhante intelectual brasileiro, com minha expectativa de que sigam conquistando o conhecimento e, na mesma proporção, o sentimento de solidariedade humana.   

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O MÉDICO

“... e, de repente, um canto da minha memória que o esquecimento escondera se iluminou, e eu o vi de novo, do jeito como o havia visto pela primeira vez: o quadro. Vejo-me, menino, na sala de espera do consultório médico. Estou doente. Meus olhos assustados passeiam pelos objetos à minha volta. Até que o encontram. Pendia, solitário, na parede branca. Levanto-me e me aproximo, para ver melhor. Leio o nome da tela: O médico.

É a sala de uma casa. Cena familiar.
Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião. Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente. A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo. Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro. Seus olhos estão fechados, mergulhados num esquecimento febril. Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela? Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum poderá tocá-la. Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.

O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz. Do lampião a querosene sai a luz que ilumina a menina. Mas da menina doente sai a luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria, que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.

O artista escolheu de propósito. Se, ao invés de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste mas não é trágica. É como o acorde final de uma sonata. O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação.

A luz da vida é alegre, brincalhona, esbanja cores, vive de uma exuberância que pode se dar ao luxo de desperdiçar. Todos os objetos ficam coloridos ao seu toque, os grandes e os pequenos, os importantes e os insignificantes. A luz da morte, entretanto, só ilumina o essencial. Naquela sala se sabe a verdade essencial. O universo inteiro está encolhido. O centro absoluto, em torno do qual giram todos os mundos, é uma menina doente. De que valem as montanhas e os mares, os homens, seus negócios, seus amores e suas guerras, se naquele quarto uma menina luta com a morte?

Num canto, o casal, pai e mãe, imagens da impotência. Nada sabem fazer, nada podem fazer. A mãe está debruçada sobre uma mesa. Seu rosto está mergulhado no vazio. Só lhe resta chorar. O marido, de pé, pousa a mão sobre o ombro da esposa. Mas imagino que ela não a sente. Naquele momento ela não é nem esposa nem dona de casa: é mãe, apenas mãe. O gesto do marido, que quererá dizer? Será uma tentativa de consolo, como se dissesse: "Eu estou aqui"? Pobre consolo! Ou será o contrário, uma discreta busca de apoio, como se dissesse: "Também eu estou desamparado!"? Tudo é uma despedida pronta a cumprir-se. E o amor, a coisa mais alegre, se revela como a coisa mais triste. Diante da morte, o amor ganha cores trágicas.

O pai está vestido com um pesado capote. É estranho! Por que tanto agasalho dentro de casa? O capote nos conta de sua viagem pelo frio, o desamparo em busca de socorro. Doutor, venha depressa! A minha filha... Voltou e nem se lembrou de tirá-lo. Pois que importa o desconforto de um capote dentro de casa quando a filha luta com a morte?

        Ao lado da menina, um estranho, assentado: o médico. Pois o médico não é um estranho? Estranho sim, pois não pertence ao cotidiano da família. E, no entanto, na hora da luta entre o amor e a morte, é ele que é chamado.

        O médico medita. Seu cotovelo se apóia sobre o joelho, seu queixo se apóia sobre a mão. Não medita sobre o que fazer. As poções sobre a mesinha revelam que o que podia ser feito já foi feito. Sua presença meditativa acontece depois da realização dos atos médicos, depois de esgotados o seu saber e o seu poder. Bem que poderia retirar-se, pois que ele já fez o que podia fazer... Mas não. Ele permanece. Espera. Convive com a sua impotência. Talvez esteja rezando. Todos rezamos quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: esta comunhão com o amor, sobre o vazio... Talvez esteja silenciosamente pedindo perdão aos pais por ser assim tão fraco, tão impotente, diante da morte. E talvez sua espera meditativa seja uma confissão: Também eu estou sofrendo...

        Amei este quadro a primeira vez que o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão porque, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco.

        Hoje o quadro já não mais se encontra nas salas de espera dos consultórios médicos. A modernidade transferiu a morte do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar de poder.

        E os médicos foram arrancados desta cena de intimidade e colocados numa outra onde as maravilhas da técnica tornaram insignificante a medi­tação impotente diante da morte.

        Mas a bela cena não desapareceu. Sobrevive em muitos, como memória e nostalgia, em meio às frestas das instituições. A estes médicos, cujos nomes não é preciso dizer (pois eles sabem quem são), que silencio­samente meditam diante do abismo misterioso da tragédia humana, ofereço a minha própria meditação impotente. Olho para eles com os mesmos olhos do menino que, pela primeira vez, se defrontou com a beleza desta cena, na sala de espera de um consultório.”

2 comentários:

  1. Parabéns pelas palavras, muito bonito. E o texto de Rubem Alves é bem triste.

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  2. Texto muito bem escrito e Rubem Alves, sempre demais...
    Parabéns!!!

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