sábado, 3 de outubro de 2009

A amizade... (José Carlos Leite Junior)


Lembro de ter lido que a alma nobre se ocupa da sabedoria e da amizade: destas, a primeira é um bem mortal, a outra imortal.

Duas coisas essenciais: o sentimento da amizade e a palavra. Amigos são fundamentais às nossas existências e deles devemos cuidar como o precioso patrimônio que são. De outro lado a palavra. Amizade é o sentimento que beira o incondicional e devemos ser extremamente cautelosos com as palavras, mais ainda com as interpretações. Muitas vezes os mal-entendidos governam o mundo...

Já transcrevi aqui um texto de Bernardo Soares (o outro “eu” do Fernando Pessoa) que diz:

“E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito. [...] Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão! De quão complexas inteligências não é feita a compreensão dos outros de nós."

Pois então! Quantas vezes falamos e não somos compreendidos, ou, ainda, quantas vezes expressamos de forma equivocada o que estamos sentindo. E surgem os mal-entendidos...

Ontem presenciei uma manifestação do sentimento de amizade entre amigos comuns. Nunca é fácil exteriorizar concepções circunstancialmente divergentes, contrariedades que se criam interiormente, muitas vezes de forma isolada, solitária, por faltar percepção ao outro. De uma parte a postura (ou ausência dela). De outro lado a sensação de que importância dada à amizade não estaria sendo proporcional. E a exteriorização de tal contrariedade, ou seja, a palavra, pode não ser articulada da melhor forma ou no melhor momento.

Tudo isso é possível. Mas a amizade nos fortalece. Sim, a verdadeira amizade nos fortalece, pois sempre acaba permitindo o esclarecimento ou a superação do mal-entendido. Por isso dedico a esses meus fraternos amigos o texto singelo de Rubem Alves que a seguir transcrevo, tirado do livro O Retorno E Terno - Crônicas:


A AMIZADE.

“Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se vê! Dei-me conta, com uma intensidade incomum, da coisa rara que é a amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode ser resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...
 Lembrei-me de um trecho de Jean-Christophe, que li quando era jovem, e do qual nunca me esqueci. Romain Rolland descreve a primeira experiência com a amizade do seu herói adolescente. Já conhecera muitas pessoas nos curtos anos de sua vida, mas o que experimentava naquele momento era diferente de tudo o que já sentira antes. O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos a vida inteira.
A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre. Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.

“Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava ‘Tenho um amigo, tenho um amigo!’ Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada. Estava morto de sono e adormeceu assim que se deitou. Mas durante a noite foi acordado duas ou três vezes, como que por uma idéia fixa. Repetia para si mesmo: ‘Tenho um amigo’, e tornava a adormecer.

Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa em cuja companhia não é preciso falar. Você tem aqui um teste para saber quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está não é amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer ou jogar. Até que tudo isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não é amiga, terminado o alegre e animado programa, vem o silêncio e o vazio – que são insuportáveis. Nesse momento o outro se transforma num incômodo que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.

Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independentemente ao que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas.

Uma estória oriental conta de uma árvore solitária que se via no alto de uma montanha. Não tinha sido sempre assim. Em tempos passados a montanha estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia ser transformada em tábuas. Inútil para os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores de essências em busca de madeiras perfumadas. Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou. Por ser inútil, sobreviveu. Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes se assentam sob a sua sombra e descansam.

Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil eventualmente, mas não é isso que o torna um amigo. Sua inútil e fiel presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de comunhão. Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.”

É isto e por isto é que eu entendo a amizade como algo que transita no andar de cima. Algo que devemos preservar, por ser essencial, sendo cautelosos com as posturas, com as palavras, com o tom que empregamos e com as interpretações que fazemos. Daí a alegria pelo diálogo entre meus amigos!
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Um comentário:

  1. Adorei o ultimo paragrafo.... pena que nem sempre é assim...

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