quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ana Carolina. "É bom ...". (J. Carlos Leite Junior).

Feliz da vida desde ontem quando Ana Carolina entrou sorrindo na sala e disse: “Ei, Família, passei no vestibular. E em 16º lugar.”

Foi o primeiro vestibular que prestou. Que sensação extraordinária, excepcional em muitos sentidos e por muitas razões. Compreendo agora a reação de meu Pai lá em Irati quando de Curitiba telefonei contando que havia passado em Direito: foi ao lado, na então pastelaria do amigo Castilho, anunciou a que lhe era boa nova e pagou a conta dos que estavam por lá. É assim. A alegria é incondicional, desaparecem as marcas das discussões para que estude mais, pouco importa o nome da faculdade, o que pensam e falam, se realmente vai fazer esse curso ou outro para o qual enfrentará novos exames. Importante é ver nos olhos da filha a alegria, a realização, a superação. Sinto-me orgulhoso por constatar as transformações, pois eu as identifico.

Queria poder fazer mais, dizer mais, porém limito-me a expressar meu orgulho de Pai. E a dizer que realmente aqueles que podem é porque pensam que podem, ainda que apenas isto não seja o suficiente para obter os resultados. Acredite sempre em você, na tua capacidade e, como me disse um amigo querido que está no oriente eterno (e que certamente está feliz por você, a quem sempre chamou de broto): não faça aquilo que tua consciência não recomende.

Sou leitor e admirador de Rubem Alves, que acho genial. E é numa de suas crônicas que vou buscar mensagem para Ana Carolina. Mensagem que a faça acreditar sempre em sua capacidade, que a faça redobrar seu esforço para exercer a tolerância, que não se permita esmorecer com as adversidades e que fundamentalmente conquiste serenidade para enfrentar os fatos da vida, pois sabe que o que possa lhe parecer “mau” o tempo poderá demonstrar o contrário ...

“SE É BOM OU SE É MAU...”

Quando eu contava estórias para a minha filha – ela era bem pequena ainda – tinha uma pergunta que ela sempre me fazia: “Esta estória aconteceu de verdade?” Eu não tinha jeito de responder.

Se fosse o Peter Pan, adulto, tal como aparece Hook – A volta do Capitão Gancho, eu diria logo que era só uma mentirinha sem importância que eu estava inventando para que ela dormisse logo e eu pudesse voltar a me ocupar das coisas importantes do mundo real do dinheiro, da política, do trabalho, das rotinas da casa. Diria a ela que o livro que me importava, aquele que eu realmente lia, livro de cabeceira, era a agenda de capa verde. Nas suas páginas se escrevia a realidade. Mas ela era ainda muito criança - com o tempo cresceria e aprenderia a ler a literatura do real que só pode ser lida nas agendas. Por enquanto, ela podia se entregar as palavras mentirosas das estórias, só para que o sono viesse mais depressa...

Mas eu não era o Peter Pan adulto e o que eu tinha para dizer eu não dizia, pois achava complicado demais para a cabecinha dela. O que eu gostaria de dizer a ela e não disse é que as estórias que eu contava não aconteceram nunca para que acontecessem sempre. A Terra do Nunca é a Terra do Sempre, que existe eternamente dentro da gente. Já o que aconteceu de fato, documentado, fotografado, comprovado pela ciência e escrito com o nome de História – isso aconteceu do lado de fora da gente e, por isso, não acontece nunca mais. Está morto e enterrado no passado, e não há feitiço que faça ressuscitar. Mas aquilo que não aconteceu nunca, aquilo que só foi sonhado, é aquilo que sempre existiu e que sempre existirá, que nem nasceu e nem morrerá, e a cada vez que se conta acontece de novo...

Se ela me tivesse feito a pergunta de um jeito diferente, se me tivesse perguntado se acreditava na estória, ah!, eu teria respondido fácil: “Mas é claro que acredito!” Pois eu só acredito no que não aconteceu nunca, no que é sonho, pois os sonhos, é disso que somos feitos.

A estória da Branca de neve não aconteceu nunca, mas todos nós somos, sempre, uma Madrasta que se vê triste diante do espelho e manda a menina, nós também, para ser morta na floresta. A estória de João e Maria não aconteceu nunca, mas em toda a criança existe a fantasia terrível do abandono. A estória de Romeu e Julieta não aconteceu nunca, mas queremos ouvi-la de novo, pois dentro de nós existe o sonho do amor puro, belo e imortal. E é por isso que sou incuravelmente religioso, porque nas estórias da religião, que não aconteceram nunca, os sonhos e pesadelos da alma se acham refletidos. Acredito porque sei que são mentiras. Se fossem verdades, não me interessariam.

As estórias são contadas como espelhos, para que a gente se descubra nelas. Os orientais são os grandes mestres nesta arte, esquecida dos ocidentais porque cresceram, como o Peter Pan do filme Hook, e passaram a acreditar somente naquilo que a agenda conta, sem perceber que, porque ela diz a verdade, mente.

Quero contar para vocês a estória que mais tenho contado – não aconteceu nunca, acontece sempre. Um homem muito rico, ao morrer, deixou suas terras para os seus filhos. Todos eles receberam terras férteis e belas, com exceção do mais novo, para quem sobrou um charco inútil para a agricultura. Seus amigos se entristeceram com isso e o visitaram, lamentando a injustiça que lhe havia sido feita. Mas ele só lhes disse uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”. No ano seguinte, uma seca terrível se abateu sobre o país, e as terras dos seus irmãos foram devastadas: as fontes secaram, os pastos ficaram esturricados, o gado morreu. Mas o charco do irmão mais novo se transformou num oásis fértil e belo. Ele ficou rico e comprou um lindo cavalo branco por um preço altíssimo. Seus amigos organizaram uma festa porque coisa tão maravilhosa lhe tinha acontecido. Mas dele só ouviram uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte seu cavalo de raça fugiu e foi grande a tristeza. Seus amigos vieram e lamentaram o acontecido. Mas o que o homem lhes disse foi: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” Passados dez dias o cavalo voltou trazendo dez lindos cavalos selvagens. Vieram os amigos para celebrar esta nova riqueza, mas o que ouviram foram as palavras de sempre: “ Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte, o seu filho, sem juízo, montou um cavalo selvagem, O cavalo corcoveou e o lançou longe. O moço quebrou uma perna. Voltaram os amigos para lamentar a desgraça. “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”, o pai repetiu. Passados poucos dias vieram os soldados do rei para levar os jovens para a guerra. Todos os moços tiveram de partir, menos o seu filho de perna quebrada. Os amigos se alegraram e vieram festejar. O pai viu tudo e só disse uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá...”

Assim termina a estória, sem um fim, com reticências... Ela poderá ser continuada, indefinidamente. E ao contá-la é como se contasse a estória de minha vida. Tanto os meus fracassos quanto as minhas vitórias duraram pouco. Não há nenhuma vitória profissional ou amorosa que garanta que a vida finalmente se arranjou e nenhuma derrota que seja uma condenação final. As vitórias se desfazem como castelos de areia atingidos pelas ondas, e as derrotas se transformam em momentos que prenunciam um começo novo. Enquanto a morte não nos tocar, pois só ela é definitiva, a sabedoria nos diz que vivemos sempre à mercê do imprevisível dos acidentes. “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”.
(Rubem Alves).



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